Esta é a última parte da palestra de J. J. van der Leeuw, o holandês que alinhou as suas ideias com as de Krishnamurti na altura em que este quebrou a sua ligação com a Sociedade Teosófica (ST), repudiando a revelação em detrimento da realização pessoal. Van der Leeuw faz um diagnóstico bastante extenso das fragilidades da ST, diagnóstico esse, que na opinião de alguns teosofistas, ainda se mantém atual.
Um vez mais remeto para a 1ª parte, onde são feitas uma série de considerações que contextualizam a intervenção de van der Leeuw.
Do seu vasto conteúdo, chamo a atenção no alerta que o texto faz para algumas situações que ainda se veem: o papaguear de textos teosóficos, sem a mínima compreensão do que lá está e as atitudes de guru (no pior sentido da palavra) de alguns responsáveis de organizações teosóficas, que decretam o que deve ou não ser lido e o que pode ou não ser discutido.
O equilíbrio entre a literatura (somada à orientação recebida por parte de outrem, caso exista) e o desenvolvimento do caminho individual deve ser encontrado. Por essa razão e conforme já expressei anteriormente, não concordo com algumas das conclusões do teosofista holandês, sendo que nesta 5ª parte em particular, tenho as maiores reservas sobre as afirmações que são feitas sobre a relação entre a Teosofia e a Ciência. No entanto, é sempre preciso recordar a altura e o contexto em que van der Leeuw se pronunciou.
Lembre-se que, conforme diz Jerry Hejka-Ekins na introdução, van der Leeuw pagou caro por esta sua intervenção, perdendo a sua posição dentro da ST. No fundo, mais uma prova de que o que ele havia dito... era mesmo verdade!
Segue-se então o final da palestra de van der Leeuw, que encerra com uma frase marcante.
"Eu desejo tornar perfeitamente claro que não estou de
modo algum negando a existência dos Mestres ou a possibilidade de comunhão com
eles. Se eu pensar que o Mestre falou comigo, este facto não implica revelação,
mas apenas experiência: eu tenho uma experiência que pode ou não ser de valor
para mim. A revelação apenas começa
quando eu transmito aos outros as mensagens assim recebidas, como vindas de uma
autoridade invisível. Eu gostaria de sugerir que aqueles que pensam que
receberam uma mensagem de um Mestre ou de uma autoridade superior devem
primeiro ver se concordam com ela, se desperta uma resposta na sua própria
alma. Se sim, deixem-no, quando fala sobre isso aos outros, falar em seu
próprio nome e dizer: “Eu penso isto e vou fazer isto”. Mas nunca o deixem
dizer: “O Mestre pensa assim ou o Mestre quer assim”. Caso ele próprio não
concorde com a comunicação recebida, que não diga nada. Mas nunca o deixem
falar em nome de uma autoridade invisível. A revelação é ainda mais funesta
quando interfere com a vida do indivíduo e tenta guiar a sua vida, dizer-lhe o
que fazer ou onde ele se encontra. Tem sido costume nos centros teosóficos
olhar para alguns com sendo capazes de dizer a outros onde se encontram em
termos da sua evolução espiritual, se deram ou não um passo em frente. Assim o
progresso espiritual fica dependente da revelação, e dado poder a alguns de
dizer a outros onde se encontram. As consequências disto são sempre funestas. O
absurdo da situação fica claro quando nós pensamos que se estas poucas pessoas,
supostamente capazes de nos dizer onde nos encontramos, morressem, ficaríamos
perdidos na incerteza. Uma vez mais, se os canais designados discordassem entre
si, como já aconteceu no passado, teríamos de escolher entre quem acreditamos e
quem não! É inevitável que, nos casos em que tanto poder está nas mãos de uns
poucos, os seus gostos e aversões pessoais inconscientemente influenciem a posição
oculta em que eles colocam os restantes. Estes, por sua vez, poderão ter medo
de contradizer ou de se opor a alguém que tem o poder de conceder ou recusar
etapas, mas tentarão manter boa impressão, e fazer tudo o que lhe é pedido.
Assim, surgem uma série de testes espirituais, prejudiciais para o indivíduo e
para a causa que ele serve. Mas acima de tudo, permanece o facto de que é
impossível, em qualquer altura, seja para quem for, dizer a outro onde ele está
em termos de progresso espiritual. Ninguém nos pode revelar isso, a não ser a
vida que está em nós. Cada indivíduo é como um raio que parte do centro de um
círculo. Ele só pode entrar no centro da vida juntamente com o raio, que é o
seu próprio ser, nunca através de outro. A vida expressa-se em cada um de nós,
num modo em que nós, sozinhos, e mais ninguém, podemos conhecer. Existe um
santuário de vida em cada um de nós, no qual apenas nós podemos entrar e ouvir
a sua voz. Não podemos entrar nesse santuário através da porta clandestina da
revelação. Só existe a verdadeira estrada da nossa experiência diária. Ninguém nos
pode dizer o que fazer na vida, que trabalho abraçar, se não a voz da vida que
está dentro de nós, a nossa vocação interior, a nossa singularidade individual.
Ir até outro e perguntar-lhe o que devemos fazer ou onde nós nos encontramos é
violar a vida que está em nós, e desligarmo-nos dela.
Eu gostava de enfatizar que não nego a existência do caminho
oculto ou de degraus nele como o discipulado ou a iniciação. A sua existência
ou não-existência encontra-se fora do assunto que estou a tratar. O elemento da
revelação só entra quando alguém, em nome de uma autoridade inacessível e
invisível diz a outros onde eles se encontram e que passos eles tomaram, e
ninguém terá dado um passo, a menos que um dos poucos canais de revelação tenha
afirmado que ele o tenha feito.
Nada se perderia se esta prática com as suas consequências
funestas fosse descontinuada. Se dar um passo traduz-se por uma expansão da
vida interior, essa expansão é real e manifestar-se-á quer alguém diga que
demos um passo ou não. De que nos valeria se todos reconhecessem que demos o
passo e a expansão de vida não estivesse dentro de nós? E pelo contrário, que
perderíamos se todos concordassem em que não demos o passo apesar da nossa expansão
de vida, demonstrada de forma evidente no nosso quotidiano? O dizer ou não
dizer é completamente acessório e totalmente pernicioso nas suas consequências.
É snobismo espiritual, onde os eleitos sentam-se nos lugares de honra, enquanto
o rebanho é menosprezado.
Apesar dos resultados da revelação serem sempre funestos e
opostos ao espírito da Teosofia - que é a realização – os mesmos são
especialmente perigosos quando interferem com as vidas das pessoas e quando as conduz
a deixar de fazer o trabalho que elas estão a fazer e a levar a cabo trabalho
que elas não têm intenção de fazer. Especialmente quando estão envolvidos
jovens essa interferência é indesculpável. Eu conheço casos, onde, com base na
revelação, jovens têm abandonado os seus estudos universitários para que se
possam dedicar à “Obra”. Como se a “Obra” de cada um não fosse aquilo que a
vida lhe pede para fazer, em vez da revelação vinda de outrem! Na educação
moderna, especialmente no método Montessori, é claramente reconhecido que o
caminho de vida é o caminho da realização. A criança é rodeada de material
didático, o único propósito do qual é fazer brotar as suas faculdades e
permitir-lhe aprender por experiência. Deste modo, a criança irá
espontaneamente se tornar naquilo que a vida interior quer que ela seja.
Em oposição a este espírito da vida está o espírito rígido
onde as ordens vêm do alto e têm de ser obedecidas sem discussão ou demora. É
este espírito que inevitavelmente acompanha a revelação, a hierarquia
espiritual é como um exército espiritual onde as ordens devem ser obedecidas e
não questionadas. Neste exército espiritual, a singularidade individual e o
génio criativo são esmagados. Nós não
podemos portanto nos interrogar porque tem havido tão pouco trabalho criativo
na Sociedade Teosófica. É porque o ideal do “grupo de servidores” tem sido
obediência à revelação e não autoexpressão através da realização.
Não há razão nenhuma pela qual não deva alguém
ocasionalmente de pedir conselho àqueles mais sábios do que ele próprio, e
discutir com eles as suas dificuldades. Não há razão pela qual não se deva tentar
aprender tanto quanto possível de instrutores e livros, desde que se perceba
que temos de tomar as nossas decisões em nosso próprio nome e que é uma
fraqueza deslocar a responsabilidade para os outros. Nós não devemos ter medo
de guiar as nossas próprias vidas. Melhor cair nessa tentativa do que seguir
com segurança no caminho de outro.
Não há futuro na Sociedade Teosófica a menos que se livre
para sempre do mal da revelação. É completamente incompatível com a Teosofia,
que é essencialmente a experiência do Divino, ou realização. Não é outro
“caminho” ou “aspeto”, pois a superstição não é um caminho, mas um erro. Existe
uma pseudo-tolerância que concorda com as visões mais conflituantes, considerando-as
todas de forma imparcial, e tentando retirar “algo de bom de cada uma”. Esta
tolerância é na realidade falta de coluna vertebral, uma ausência de vigor.
Que ninguém ouse dizer que no meu discurso eu neguei o
ocultismo. Existe um futuro para o ocultismo se se adequar estritamente aos
métodos científicos e submetê-los a testes e provas. Só se pode desenvolver se
renunciar inteiramente a todas as reivindicações espirituais ou religiosas. Tem
tão pouco a ver com estas como a ciência corrente. Tal como a ciência não se
pode desenvolver até se ter livrado do fascínio místico e espiritual na qual
foi envolta na Idade Média, assim também a condição de progresso para o
ocultismo como uma ciência é descartar o halo de mistério na qual está envolta.
Quando a questão é colocada, “tem a Sociedade Teosófica futuro?”
eu só posso responder que não sei. Mas o que posso dizer com toda a certeza é
que não tem nenhum futuro a menos que se liberte da mentalidade antiquada que
ainda a impregna e nasça de novo no espírito da nova era. Que o espírito seja
de amor da vida em vez de medo da vida, um onde a vida seja bem-vinda, apesar
dela poder destruir as crenças onde nós encontrámos refúgio até agora.
A Teosofia deve deixar de ser uma filosofia do Além, deve
conquistar a dualidade onde está enraizada e perceber que a porta aberta da
realidade fica aqui e agora, na efetiva experiência diária do homem e não
nalgum mundo superior ou futuro distante. Ninguém pode abrir esta porta para
nós e ninguém pode fechá-la. Não é uma experiência mística para uns poucos, é
para todos e é apenas o nosso medo da vida que nos torna incapazes de vê-la.
A Teosofia tem de perceber que a sua alegação de ser um
sistema filosófico, explicando os problemas da vida, não tem qualquer apelo ao
homem moderno que sabe que a vida não é um problema a ser resolvido, mas que é
uma procura e uma experiência em crescendo.
A Sociedade deve deixar de ser uma fraternidade com a exclusão
dos irmãos menos desejados, deve quebrar as barreiras que tornam possível falar
de um “mundo exterior” e criar uma nova forma de filiação que não envolva
alianças sectárias.
Acima de tudo, os teosofistas devem aprender a reconhecer o
conflito que tem sido inerente à Teosofia desde início, aquele entre a
revelação e a realização. A Teosofia, como a realização da vida por cada homem
na sua consciência, é incompatível com um sistema hierárquico de revelação,
onde a verdade e a iluminação vêm a nós através dos outros e onde a orientação
das nossas vidas assenta em ordens recebidas de superiores.
O homem moderno não mais deseja um abrigo ou um refúgio,
consolação ou segurança. Mais do que estagnar na falsa tranquilidade ou
felicidade que estes possam dar, ele vai à luta sozinho e enfrentar a
tempestade da vida com as suas forças.
O objetivo da Teosofia é criar, não fracos, mas fortes
homens."
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