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sábado, 26 de julho de 2014

A Teosofia e as Sociedades Teosóficas (2ª parte)

Continuamos esta semana com a tradução do excelente artigo do professor James A. Santucci, "A Teosofia e as Sociedades Teosóficas", iniciada na passada semana.


Durante a década de 80 do século XIX, quatro acontecimentos significativos ocorreram na história da Sociedade Teosófica: (1) o caso Coulomb (1884); (2) a formação da Secção Esotérica da Sociedade Teosófica a 9 de outubro de 1888, sob a direção de Madame Blavatsky; (3) a publicação em 1888, de A Doutrina Secreta – o trabalho seminal do Movimento Teosófico – e (4) o ingresso na Sociedade Teosófica em maio de 1889, de Annie Besant (1847-1933), a segunda presidente da Sociedade de Adyar e certamente a teosofista de Adyar mais proeminente do século XX.


William Quan Judge e Henry Steel Olcott


(1)   No que respeita ao Caso Coulomb, Emma Coulomb, uma governanta da sede de Adyar, acusou Blavatsky de ter produzido fenómenos psíquicos fraudulentos e de ter escrito cartas em nome dos seus Mestres ou Mahatmas. Ela foi investigada por Richard Hodgson em nome da Sociedade de Investigação Psíquica (S.I.P.), cujo relatório de 1885 (que foi o segundo relatório publicado pela S.I.P. sobre Blavatsky, sendo que o relatório preliminar de 1884 era mais neutral) acusou-a de ter cometido esses delitos, pondo assim em causa a alegação de que os Mestres ou Adeptos realmente existiam.
Embora o relatório Hodgson tenha sido aceite pela S.I.P. na sua reunião geral realizada a 26 de junho de 1885, nunca foi a opinião oficial e institucional daquela organização. Hodgson escreveu a maior parte do relatório, mas o mesmo foi o produto de um comité que consistia não só de Hodgson mas também de E. Gurney, F.W.H. Myers, F. Podmore, H. Sidgwick, J. H. Stack e da Sra. H. Sidgwick. Pelo facto de o Relatório Hodgson nunca ter sido oficialmente aceite, a S.I.P. não poderia remover um relatório que nunca foi publicado. O que fez, ao invés, foi publicar uma declaração para “compensar por qualquer ofensa que [a S.I.P.] possa ter feito”, como declarado na nota editorial do artigo de Vernon Harrison “J’Accuse” (Journal of the Society for Psychical Research 53.803 (abril 1986): 286. O artigo começa com uma afirmação forte: “O Relatório do Comité designado para investigar fenómenos relacionados com a Sociedade Teosófica (chamado habitualmente de Relatório Hodgson) é o mais conhecido e controverso de todos os relatórios publicados pela Sociedade de Investigação Psíquica. Faz julgamento à Madame H.P. Blavatsky …; e a frase final em Declaração e Conclusões do Comité tem sido citada em livro atrás de livro, enciclopédia atrás de enciclopédia, sem qualquer indicação de que possa estar errada. Reza assim: “Da nossa parte não a consideramos como a representante de videntes ocultos, nem como uma vulgar aventureira. Julgamos que ela deverá ser para sempre recordada como uma das mais habilidosas, engenhosas e interessantes impostoras da história”. Harrison prossegue demonstrando que o “caso contra Madame Blavatsky no Relatório Hodgson NÃO ESTÁ PROVADO“. O dano contudo, estava feito. Enferma à data, Madame Blavatsky partiu de Adyar.

(2)    Blavatsky acabou por se instalar em Londres, onde estabeleceu – por sugestão de W. Q. Judge – a Secção Esotérica (ou S.E.) sob a sua direção como Líder Externo (os Líderes Internos eram os Mahatmas), conforme declarado num documento anónimo (mas provavelmente escrito por Annie Besant) “A Escola Oriental da Teosofia: Esboço Histórico” reimpresso no Theosophical History 6.1 (janeiro 1996):11, publicado originalmente na revista de Madame Blavatsky Lucifer 3.14 (15 de outubro de 1888). A S.E. era uma organização destinada a “promover os interesses esotéricos da Sociedade Teosófica através do estudo mais profundo da filosofia esotérica” (vide “A Secção Esotérica da Sociedade Teosófica”, 9 de outubro de 1888). Embora não tenha nenhuma ligação institucional com a S.T., a S.E. está apenas aberta a membros da S.T.; além do mais, todos os ensinamentos e atividades são conduzidas de forma privada.


A Doutrina Secreta, de Helena
Petrovna Blavatsky

(3)    O trabalho principal de H.P. Blavatsky, A Doutrina Secreta (1888), estabelece três proposições que servem como base da Teosofia para a maior parte dos teosofistas: (1) a existência de um princípio ou realidade absoluta e infinita, (2) a natureza cíclica ou periodicidade do universo e de tudo o que nele está contido, e (3) a identidade fundamental da alma individual com a alma-superior universal e a peregrinação de todas as almas através do ciclo de encarnações de acordo com a lei cármica. A Teosofia, neste sentido, é uma perspetiva da realidade última não-dualista ou monista, que se manifesta ou emana numa complementaridade dinâmica e progressão evolucionária.


(4)    O papel ativista de Olcott foi seguido pela segunda presidente da S.T., Annie Besant, que se envolveu em numerosas atividades dentro e fora da Sociedade, incluindo atividades tão diversas como investigações de ocultismo, educação, política, reforma social e a introdução do ritualismo dentro da Sociedade. Dentro das suas várias contribuições, Besant foi fundamental na fundação do Colégio Central Hindu em Benares em 1898, tornando-se ativa na política Indiana, servindo como Presidente do Congresso Nacional Indiano, formando a Liga do Autogoverno e mais tarde desenhando a Lei do Autogoverno (1925). Dentro da Sociedade Teosófica, ela fundou a Ordem Teosófica de Serviço em 1908, com a intenção de cumprir o primeiro objetivo da Sociedade - formar um núcleo de fraternidade universal da humanidade – levando a cabo trabalhos de compaixão e de alívio do sofrimento, incluindo atividades como doação de bens, remédios, roupas, etc… aos necessitados e a abolição da crueldade sobre os animais.

Annie Besant
Continua na próxima semana.

sábado, 19 de julho de 2014

A Teosofia e as Sociedades Teosóficas (1ª parte)

Tal como já aconteceu no verão anterior com a divulgação de forma faseada, durante cerca de dois meses e meio, de um artigo de David Pratt sobre o Conde de St. Germain, o Lua em Escorpião irá publicar durante as próximas dez semanas um extenso texto da autoria do professor James A. Santucci intitulado “A Teosofia e as Sociedades Teosóficas”. Tendo em conta a temática normalmente abordada no blogue, com um grande enfoque na Teosofia, talvez fizesse sentido que este texto fosse publicado há muito mais tempo. Assim não aconteceu, mas julgamos que a espera compensou.


Prof. James Santucci

Santucci é um académico e portanto o texto é genericamente muito claro, direto,  descrevendo as (muitas) controvérsias e fricções no movimento teosófico de modo imparcial, optando por um registo descritivo. É também por esta razão um documento importante e precioso, pois muitos teosofistas que abordam esse tipo de assuntos têm o mau hábito de apresentar os factos que encaixam nos seus “pré-conceitos”.


Antes de entrarmos na tradução propriamente dita, dois agradecimentos, o primeiro dos quais ao Ivan Silvestre, que se disponibilizou para fazer a revisão da tradução. Jan Nicolaas Kind, editor do site Theosophy Forward, onde está alojada a última versão do artigo – exatamente a que foi usada para fazer a tradução para português – autorizou essa tradução (em consonância com o prof. Santucci com que também contactámos), bem como a utilização das fotos que acompanham o artigo que Kind disponibiliza em versão e-book no Theosophy Forward. É para ele que vai o nosso segundo agradecimento.





A TEOSOFIA E AS SOCIEDADES TEOSÓFICAS

Dr. James A. Santucci


O Dr. James A. Santucci é um Professor de Religião Comparada na California State University, Fullerton. Fez o seu doutoramento na Australian National University (Canberra, Austrália) em Civilização Asiática, com ênfase nos Vedas. É o editor da revista Theosophical History e de Theosophical History Occasional Papers e o autor de La società teosofica e An Outline of Vedic Literature.

Versões ou excertos deste artigo foram publicadas em: Syzygy 6.1-2 (Winter-Fall 1997): 221-45; em The Encyclopedia of Cults, Sects, and New Religions, ed. James R. Lewis (Amherst, NY: Prometheus Books, 1998): 388–9 (2nd ed.: 573), 476 (2nd ed.: 722-3), 480-3 (2nd ed.: 727-30), 483-7 (2nd ed.: 730–4), 503-5 (2nd ed.: 760-2), e 527-8 (2nd ed.: 802-3); e em Odd Gods, ed. James R. Lewis (Amherst, NY: Prometheus Books, 2001), 270-89. Esta versão foi atualizada em 2013 graças aos esforços de Janet Kerschner (Arquivista da Sociedade Teosófica na América, Wheaton, Illinois), S. Ramu (Diretor Geral, Theosophical Publishing House, Adyar), Kenneth Small (Point Loma Publications) e Jan Nicolaas Kind (Theosophy Forward). [Foi ainda editado para publicação na Internet por John Algeo.]

Notas da reunião de 8 de setembro
 de 1875 em Nova Iorque onde se
propôs a constituição da
Sociedade Teosófica



Teosofia

O movimento teosófico moderno está hoje representado nos Estados Unidos, principalmente através de seis organizações: a Sociedade Teosófica, sedeada internacionalmente em Adyar, Chennai, Índia; a Sociedade Teosófica sedeada em Pasadena, Califórnia; a Loja Unida de Teosofistas, constituída em Los Angeles, Califórnia; o Templo do Povo, com sede em Halcyon, perto de Pismo Beach, Califórnia, a Word Foundation de Dallas, Texas e a Publicações Point Loma em San Diego, Califórnia. Destes grupos, a Sociedade de Adyar é considerada pela maioria (embora não por todos) dos teosofistas como a organização matriz. Todos afirmam disseminar Teosofia, um termo popularizado e definido por Helena Petrovna Blavatsky (1831-91), como a sabedoria das eras, incorporando “conhecimento esotérico superior” – portanto, uma “Doutrina Secreta” – parcialmente recuperável de forma imperfeita e incompleta naquelas partes das escrituras das grandes religiões mundiais que expressam ensinamentos místicos e naquelas filosofias que evidenciam uma inclinação monista ou panteísta.


Helena Petrovna Blavatsky



História inicial


A Sociedade Teosófica foi fundada em Nova Iorque em 1875 tendo Henry Steel Olcott (1832-1907) como seu primeiro presidente, H.P. Blavatsky como sua primeira secretária correspondente, George Henry Felt e Seth Pancoast como vice-presidentes e William Quan Judge (1851-96) como conselheiro para a Sociedade. Inicialmente proposta a 7 de setembro pelo Cel. Olcot, a sociedade – intitulada “A Sociedade Teosófica” a 13 de setembro – iniciou a sua atividade a 17 de novembro com o discurso presidencial de Olcott.

Menos de três anos depois, em maio de 1878, a Sociedade Teosófica ligou-se a uma organização reformista hindu conhecida como Arya Samaj, liderada pelo Swami Dayananda Sarasvati (1824-83), cuja promoção dos Vedas – as antigas escrituras das tribos Arianas do Norte da Índia compostas entre 1600 e 500 A.C – como fonte da Verdade funcionou como alicerce da sua tentativa de fazer regressar o Hinduísmo a uma forma mais pura, livre de práticas e ensinamentos corrompidos que surgiram posteriormente, tais como a poligamia, casamento com menores, castas, sutee [NT: antigo costume, hoje proibido que obrigava a viúva a se sacrificar viva na fogueira do seu marido morto] e politeísmo. Devido às diferenças que surgiram depois de alguns meses de ligação – uma das quais era a adoção por parte do Swami de um deus pessoal supremo, uma proposição que não era aceitável por parte de muitos dos membros da Sociedade Teosófica – foi decidido modificar a associação distinguindo 3 organismos: (1) a Sociedade Teosófica, (2) a Sociedade Teosófica de Arya Samaj de Aryavarta, uma “sociedade de ligação” e (3) a Arya Samaj. Existiam diplomas separados para cada uma, com os membros de (2) a pertencerem simultaneamente a (1) e (3). Em 1882, todas as ligações foram quebradas devido aos ataques dirigidos aos teosofistas pelo Swami Dayananda em resposta aos seus líderes, Olcott e Blavatsky, se terem associado a Budistas e Parses e ao facto de se terem convertido formalmente ao Budismo no Ceilão (Sri Lanka) ao receberem o pansil (pancasila), “os Cinco Preceitos” em maio de 1880. Por esta altura, a sede da Sociedade Teosófica foi mudada por H.S. Olcott e H.P. Blavatsky primeiro para Bombaim, no início de 1879, e depois para Adyar, Madras (agora Chennai) em dezembro de 1882.


Henry Steel Olcott
Continua na próxima semana.

sábado, 12 de julho de 2014

Três tipos de Karma (2ª parte)

Continuamos a tradução do texto "Três tipos de karma" da revista "The Theosophical Movement", iniciada na semana anterior.


B.P. Wadia, fundador da revista
"The Theosophical Movement"

"Isto também implica que a pessoa que fez, de forma sincera, um voto para purificar a sua natureza irá experienciar bons e maus efeitos súbitos, que de outro modo espalhar-se-iam durante muitos mais dias ou anos sob a forma de vários pequenos acontecimentos.

Agami é aquele karma que estamos a construir na vida atual, cujos efeitos serão sentidos nesta ou em futuras encarnações. É gerada pelos nossos pensamentos, sentimentos, palavras e ações, no quotidiano. Prarabdha karma é a porção ou aspeto do karma que está em operação na vida e corpo presentes, desde o nascimento, trazendo consigo todas as circunstâncias e mudanças. O Destino é o karma que amadureceu, não podendo, a sua expressão, ser evitada ou adiada. Por exemplo, não podemos mudar o sexo, família, nação ou raça na qual nascemos. O karma que é irreversível pode ser chamado de destino. O Sr. Judge define o Destino desta forma:

"Destino é a palavra aplicada a um karma tão forte e avassalador que a sua ação não pode ser contrariada por outro karma; mas no sentido em que todos os acontecimentos são dependentes do karma, tudo o que acontece está destinado."

O Destino é o karma em ação. (imagem examiner.com)

Na ausência do conhecimento da lei do karma descrevemos certos acontecimentos inevitáveis referindo: “Isto estava destinado”. Mas o destino é apenas a operação de determinadas causas poderosas, de modo a que nenhuma ação nossa ou qualquer outro karma possa evitar ou modificar o resultado. Para um karma deste género podemos afirmar, “o que não pode ser resolvido, deve ser suportado.” Experienciamos os efeitos do karma desta vida, bem como de vidas anteriores. O que experienciamos é o resultado do balanceamento de diversas causas kármicas.

O karma não opera sob o princípio de uma causa produzir um efeito; várias causas podem ser precipitadas em simultâneo. Da mesma forma, uma causa poderosa pode produzir efeitos em mais do que uma direção. Existe a lei do paralelograma das forças, onde as boas e más causas podem contrabalançar-se completa ou parcialmente e o que experienciamos é o resultante. Assim, atos de amor podem, até certo ponto, mitigar a severidade das consequências kármicas.

Temos ainda a doutrina da anulação do karma. De acordo com a bem conhecida lei da física, duas forças equivalentes opondo-se mutuamente, equilibram-se. “Uma pessoa pode ter na sua conta-corrente kármica uma causa muito desagradável e ao mesmo tempo uma causa de característica oposta. Se se manifestam ao mesmo tempo, poderão se contrariar mutuamente, nenhuma será visível e o equilíbrio será a compensação de ambas”, explica o Sr. Judge. Ele acrescenta que não é necessário que sintamos cada parcela de karma com o mesmo detalhe com que foi produzida, porque diversos tipos de karma podem se precipitar em simultâneo numa altura da vida, e o seu efeito combinado produz um resultado que, embora como um todo represente de forma precisa todos os elementos presente nele, ainda assim é um karma diferente de cada componente particular.

William Quan Judge, um dos
fundadores da Sociedade Teosófica

Existem três categorias de karma, porque o karma opera nos planos físico, psíquico e moral. Uma pessoa deformada com uma boa mente tem karma desagradável operando no seu corpo, estando karma positivo a ser experienciado na sua natureza intelectual. Para entender a anulação do karma devemos nos recordar que como não se podem somar libras e euros, ou libras e dólares, da mesma forma, ao contrariar karma negativo com karma positivo é essencial que ambos os tipos de karma sejam compatíveis. Dessa forma, parece que os resultados de ações feitas principalmente no plano mental não podem ser mitigados ou obliterados por ações produzidas no plano físico. Por exemplo, uma pessoa que passou muitos anos da sua vida torturando mentalmente outro ser humano não pode esperar anular esse ato dando grandes quantias de dinheiro aos pobres. Caridade feita a partir de um excedente, sem nenhuma preocupação particular pelos pobres, ou ainda pior, apenas com a intenção de ganhar mérito (punya), não pode trazer aperfeiçoamento do caráter moral.

Também é verdade que o karma manifesta-se em harmonia com o plano do desejo. Quando temos desejo por dinheiro, fama, reconhecimento, etc… - centrado no plano inferior, criamos um “centro de atração” nesse plano. Isto irá causar que o karma passado se manifeste nesse plano. Por outro lado, no caso de uma pessoa que tem desejos mais puros e que aspira ao mais elevado, fixa o “centro de atração” no plano superior. As energias no plano inferior são para aqui atraídas, o que resulta num aumento de espiritualidade. Assim, por exemplo, se gerámos bom karma dando grandes donativos em vidas passadas, e se o nosso coração está determinado em adquirir conhecimento espiritual então o mesmo bom karma do passado no plano físico irá manifestar-se no plano superior e podemos dar-nos conta de que somos ajudados, conseguindo o tipo certo de livros, um lugar calmo para meditação e estudo, e assim por diante.

O destino de hoje (prarabdha) resulta das nossas escolhas no passado. A escolha de hoje tece o nosso destino futuro. Se um homem toma a decisão de ir na direção correta, avança, se acontece o contrário, retrocede. O destino é tecido nas mentes dos homens com bons e maus pensamentos. Com o Agami Karma sendo gerado agora, podemos mudar o saldo do nosso karma acumulado. Além disso, quando o karma amadureceu e começou a se precipitar, podemos experienciar os seus efeitos com a atitude certa. Contudo, “aceitação” não deve ser equivalente a passividade ou impotência. Se formos capazes de mudar a situação, devemos fazer tudo o que está ao nosso dispor para modificá-la. Não é suposto permanecermos pobres, deficientes, ignorantes, fracos, oprimidos, ou em qualquer outra situação de sofrimento. Podemos usar a situação como matéria-prima e extrair as lições necessárias. Pode consistir em aprender as lições de firmeza e simpatia, ou desprendimento e paciência, e assim por diante. Um dos aforismos sobre o karma assinala que na vida presente podemos tomar medidas para reprimir tendências erradas e eliminar defeitos. Quando são feitos esforços intensos, a influência da tendência kármica é diminuída. O karma coloca-nos onde temos que estar, mas não nos prende."

sábado, 5 de julho de 2014

Três tipos de Karma (1ª parte)

O texto desta semana foi retirado do número de abril de 2014 da publicação da Loja Unida de Teosofistas (LUT) “The Theosophical Movement”. Este boletim mensal editado pela LUT da Índia, também disponibilizado na internet, é uma das publicações regulares de maior qualidade existentes no meio teosófico, recomendando-se vivamente a sua leitura. Foi B.P. Wadia - o líder mais carismático da LUT a par do fundador Robert Crosbie – quem iniciou a publicação de “The Theosophical Movement” em 1930.


B.P. Wadia (1881-1958)

Avancemos agora para a tradução do excelente artigo “Três tipos de karma”. As ilustrações que intercalam o texto foram colocadas por mim, não fazendo parte do texto original.


Três tipos de karma

Karma é a lei de ação e reação; de causa e efeito. A lei do Karma ajusta cada efeito à sua causa e restabelece o equilíbrio perturbado. O Karma pode ser de três tipos: Sanchita, Agami e Prarabdha. Há uma bela analogia na literatura Vedanta. O arqueiro já disparou uma flecha que saiu das suas mãos. Não pode recuperá-la. Está prestes a disparar outra flecha. O conjunto de flechas da aljava nas suas costas é sanchita; a flecha que ele disparou é prarabdha e a flecha que está prestes a disparar do seu arco é agami. Destas, ele tem controlo sobre sanchita e sobre agami, mas tem seguramente de resolver o seu prarabdha. Tem que experienciar a pressão do passado que começou a se manifestar.

Sanchita karma é aquele que está acumulado e que não está a operar no momento, porque não existe o ambiente ou as condições apropriadas para trazê-lo à ação. É como o vapor em suspensão na atmosfera, que irá cair na terra como chuva, quando as condições forem as propícias. Quando plantamos diferentes variedades de sementes, elas crescem e dão fruto em diferentes alturas. O morangueiro ou a macieira darão fruto apenas na estação certa. Por sua vez, o mangueiro apenas dará fruto depois de muitos anos. Da mesma forma, o stock completo de karma não pode dar fruto todo de uma vez. Patanjali descreve o “karma acumulado” como resíduos mentais. Sentimos o efeito dos resíduos mentais criados pelos nossos pensamentos, ações e sentimentos de vidas passadas ou presentes, quando obtivermos o tipo correto de enquadramento mental ou corporal e o ambiente adequado para trazê-lo à ação. Algumas causas kármicas são mantidas em suspenso por pouco tempo, vindo a ser concretizadas rapidamente. Desta forma, por exemplo, comer demasiado ou ingerir comida estragada pode causar dores de estômago em poucas horas. Alguém que seja um fumador inveterado ou masque tabaco pode contrair cancro oral ou do pulmão numa idade mais avançada. Contudo, alguns atos não produzem frutos nesta vida, e aparentemente a pessoa passou incólume, mas na verdade não é esse o caso. Tais atos de uma vida são como as flechas disparadas do arco, agindo sobre nós na vida seguinte, produzindo as nossas recompensas e punições. É-nos dito que até que o instrumento apropriado seja encontrado, o karma relacionado permanece inesgotado. Por exemplo, enquanto alguém está no corpo de um homem, não pode ter a experiência da maternidade; quando alguém usufrui de um intelecto brilhante como resultado de bom karma mental de uma vida passada, não é possível experienciar a imbecilidade. Da mesma forma, uma pessoa desfrutando de riqueza como resultado de bom karma passado não pode, ao mesmo tempo, experienciar pobreza .




O Sr. Judge descreve Sanchit Karma como aquilo que ainda não começou a produzir qualquer efeito nas nossas vidas devido à ação de outras causas kármicas. Somos capazes de entender isto com base na lei da Física que diz que duas forças opostas tendem à neutralidade, e que uma força pode ser suficientemente poderosa para evitar temporariamente a ação de outra. Assim, o karma pode ser adiado desde vidas passadas e na vida atual, até o karma obstrutivo ser removido.

Da mesma forma que não vamos para as compras levando connosco todo o nosso extrato bancário, também o nosso Ego nasce apenas com uma porção de resíduos mentais ou causas kármicas, que ele tem de esgotar agora. Podemos chegar a uma altura na vida onde todas as causas anteriores se esgotam, e então novo karma ou karma não esgotado começa a operar. Assim, encontramos em certos casos, súbitos reveses da sorte, onde há mudanças para melhor ou para pior, seja nas circunstâncias ou no caráter. Às vezes o karma do Ego é suficientemente poderoso para fazê-lo nascer numa família pobre, mas nessa altura, novo karma começa a operar e a criança é adotada por pais abastados, e portanto colocada num ambiente diferente. O Sr. Judge ilustra isso com um sonho estranho de um Rajá, interpretado por um adivinho como tendo o Rajá de dar uma grande quantia de dinheiro à primeira pessoa que ele visse depois de acordar no dia seguinte, pretendendo o adivinho estar no local bem cedo. No dia seguinte, o rei levantou-se invulgarmente cedo, e quando se aproximou da janela viu um candala [hindu sem casta] varrendo a sujidade. Deu-lhe a sua fortuna, erguendo-o, num segundo, da pobreza abjeta à abundância.

Um aforismo sobre o karma diz que “enquanto um homem experiencia o karma no instrumento que lhe foi fornecido, o seu outro karma, ainda não manifestado não é esgotado por outros seres ou meios, mas é mantido em reserva para operar futuramente. Durante este lapso de tempo não é sentida qualquer operação daquele karma, o que não causa deterioração na sua força ou alteração na sua natureza.” Desta forma, a força do karma acumulado não se tornará mais forte nem será diluído devido ao lapso de tempo. A adequação do instrumento é determinada pela relação exata do karma com o corpo, mente e natureza intelectual e física adquiridos para utilização pelo Ego nessa vida particular.




Contudo, podem ocorrer mudanças no instrumento de modo a que o mesmo se torne adequado para a precipitação de karma acumulado ou de uma nova classe de karma. Tal mudança na constituição física, mental ou psíquica de uma pessoa pode ocorrer quer devido à intensidade de pensamento e do poder de um voto, ou devido à alteração natural resultante da completa exaustão de velhas causas, diz um aforismo sobre o karma. Então, quando uma pessoa decide tornar-se um engenheiro, ou um médico, ou um dançarino e avança nessa direção, todas as faculdades relacionadas com esse campo começam a ser treinadas e desenvolvidas. Portanto, as naturezas física, mental e psíquica são desenvolvidas de forma a fornecer o instrumento adequado com vista ao exercício dessa arte ou tema. Quando decidimos – através de um juramento ou de um voto – viver a vida espiritual, todos os aspetos da nossa natureza, sejam nobres ou de outra índole, começam a se desenvolver. Além disso, neste caso há uma precipitação mais rápida do karma. Aquele que se predispõe a trepar ao mundo do Espírito tem de enfrentar não apenas o seu Prarabdha Karma – aquela porção de karma com a qual nascemos, ou seja, o karma para cuja precipitação o terreno está preparado –  mas, devido à sua nova decisão de romper as limitações do Karma, ele rasga um canal através do qual algum do karma acumulado conhecido como Sanchita Karma começa a fluir tornando-se Prarabdha.

Continua na próxima semana.