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sábado, 3 de setembro de 2016

A controvérsia sobre o quinto e sexto volumes de "A Doutrina Secreta" (13ª e última parte)

Depois de nas doze semanas anteriores se terem visto argumentos contra e a favor da legitimidade do 3º volume de "A Doutrina Secreta" chega a altura de fazer uma síntese e uma conclusão. Recorde-se que nas primeiras nove semanas foi publicada a tradução de “O mito do terceiro volume desaparecido de A Doutrina Secreta” de Daniel H. Caldwell e nas seguintes três a discussão sobre este mesmo tema no Theosophy Nexus

Este artigo, espero eu, irá permitir o final de discussões tão maniqueístas e extremadas à volta desta questão. O texto de Daniel Caldwell, onde se defende a tese da legitimidade do terceiro volume da “Doutrina Secreta”, está bastante bem fundamentado e tem uma sequência cronológica muito útil para analisar esta questão. Contudo, há quem apresente argumentos (legítimos) contra. Como muitas vezes acontece quando estão em avaliação situações que ocorreram há muitos anos e em que os principais atores já saíram de cena, nada é absolutamente certo. Por essa razão afirmações tão perentórias como as de Carlos Aveline que descreve o terceiro volume como uma “fabricação”, “edição ilegítima”, produto de “membros desorientados” e um ato de “deslealdade” fazem pouco sentido.


Carlos Aveline (foto: circa 2002)


O grupo de Aveline (LUT luso-brasileira) está lentamente a fazer a tradução da “Doutrina Secreta” a partir do original de 1888 e esse trabalho só deverá estar concluído daqui a alguns anos. Além da questão dos volumes ilegítimos também há a acusação de que Mead e Besant fizeram várias alterações ao texto original. Segundo várias opiniões recolhidas, algumas dessas alterações melhoraram o texto, outras são neutras e algumas não deveriam ter sido feitas. David Reigle, no entanto, considera que em termos gerais, as correções feitas por Mead e Besant melhoraram a obra, mas que o trabalho mais importante neste campo foi executado por Boris de Zirkoff que corrigiu muitas das fontes, citações e terminologia em Sânscrito e noutras línguas. É esta a versão, que também não existe em língua portuguesa, que a Sociedade Teosófica de Adyar presentemente publica.

Algumas pessoas que conheço, ao lerem estes textos críticos para com a edição existente em língua portuguesa, chegaram a pôr de lado a edição da Pensamento e até a vender os volumes no alfarrabista, sem se aperceberam que a tradução da edição original do inglês não vai de certeza absoluta incluir os volumes V ou VI (ou seja, o correspondente ao volume III inglês).

E não têm em conta que muitas das alterações feitas por Mead e Besant foram mesmo necessárias. Atente-se por exemplo, nesta frase que pode ser encontrada na p. 45 do Vol. I da “Doutrina Secreta”:




“(…) e Buddhi é a faculdade de conhecer, o canal por onde o conhecimento divino flui até ao Ego (…)”

Repare-se agora como é que a nova tradução da Doutrina Secreta feita pelo grupo da LUT luso-brasileiro apresenta esta frase:

“(…) enquanto Buddhi é a faculdade de conhecer o canal através do qual o conhecimento divino chega até o “Ego (…)”




Parece um pouco estranho, não é? E qual é a razão? Na versão original não constava a vírgula, que Mead depois acrescentou na edição de 1893 e que fez com que a frase passasse a ter sentido. Este é um exemplo de uma correção necessária à edição original e que a versão atualmente disponível em língua portuguesa tem incorporada.

Acrescente-se que segundo o sucessor de Besant na presidência da ST, George Arundale, esta edição de 1938 resulta de um fusão das “edições de 1888 e 1893. Que significa isto? Ransom, que foi a responsável pela edição de 1938 esclareceu no Canadian Theosophist que “estes melhoramentos [no texto] foram cuidadosamente revistos e nos casos em que eram obviamente vantajosos foram incorporados, caso contrário o texto de 1888 foi usado.


George Arundale (1878-1945)  e a sua esposa,
Rukmini Devi (1904-1986)

Não deixa de ser curioso que a edição preparada por Boris de Zirkoff também não tenha a vírgula…

Outra opção de gosto muito discutível que parece constar da nova tradução que está a ser feita por Aveline são um conjunto de notas de rodapé que remetem para textos escritos pelo próprio e por colaboradores.

Antes de dar por terminado este extenso artigo, queria acrescentar duas referências importantes. A primeira das quais delas é o artigo da Loja Unida de Teosofistas do Reino Unido, que é aquele que apresenta maior consistência na contestação à legitimidade do volume III.

Como argumentos mais fortes dessa posição, o autor cita H.N. Stokes e Alice Leighton Cleather. A publicação das Instruções Esotéricas, como parte desse volume III [correspondendo às páginas 77 e seguintes no volume VI da edição em português] é fortemente criticada bem como as várias alterações ao texto original de que enfermam.


Imagem que encima a página de entrada do
grupo da LUT da Reino Unido


A prova mais contundente que o editor do site blavatskytheosophy.com apresenta é uma entrevista que Besant terá concedido em 1926 ao jornal canadiano "The Hamilton Spectator", no caso ao seu editor executivo, William Mulliss.

Mulliss - Os seus críticos têm insistido que alguém suprimiu deliberadamente os terceiro e quarto volumes de "A Doutrina Secreta", mencionados por HPB no primeiro volume. O que tem a dizer sobre isto? Considera que o terceiro volume da sua edição de "A Doutrina Secreta" intitulado "Ocultismo" contém algum do material destinado aos terceiro e quarto volumes?

Besant - Fui escolhida como executora literária de HPB e o material a partir do qual compilei o terceiro volume sobre "Ocultismo" de "A Doutrina Secreta", publicado sob minha orientação foi compilado a partir de um conjunto de vários escritos encontrados na sua escrivaninha depois da sua morte. Esses papéis ficaram à minha responsabilidade.

Mulliss - Ajudou Mead na compilação desses artigos?

Besant - Não. Esses textos ficaram comigo e Mead nada teve a ver com eles.

Mulliss - Bem, e então o material para o terceiro e quarto volumes?

Besant - Nunca os vi e não sei o que lhes aconteceu.

Isto é muito diferente do que encontramos no prefácio do volume III, em que Besant refere que: "os manuscritos [foram-me] entregues por HPB" e que os recebeu "com o encargo de publicar".

É por essa razão que H.N. Stokes, no seu sarcasmo muitas vezes implacável e que incidia sobre as diversas ramificações do movimento teosófico e principais representantes (Besant, de Purucker, a própria Loja Unida de Teosofistas) escreveu no Oriental Esoteric Library Critic o seguinte:


Cabeçalho do jornal de H.N. Stokes


"Esta versão recente confirma inteiramente a opinião frequentemente expressa nos últimos anos por certos "difamadores pestilentos" [a maneira como Besant se referia aos seus críticos], a de que o terceiro volume de "A Doutrina Secreta" da senhora Besant não é na verdade uma porção daquele trabalho, mas uma compilação de uma miscelânea de artigos sobre vários temas, talvez destinados a publicação sob um ou mais títulos, possivelmente manuscritos rejeitados ou inacabados.

Em 1893 Besant eliminou da sua revisão de "A Doutrina Secreta" todas as referências ao terceiro volume, que quer HPB quer o seu assistente Dr. Keightley, tinham afirmado que estava pronta para impressão.

Em 1897 publicou um terceiro volume de  "A Doutrina Secreta" que ela alegou lhe ter sido entregue nas suas mãos por HPB, embora numa forma inacabada.

Em 1926 ela diz que este terceiro volume consiste de uma miscelânea de artigos encontrados na escrivaninha de HPB depois da sua morte e que nada sabe sobre o terceiro volume mencionado por HPB.

Deixo de bom grado a reconciliação destas afirmações aparentemente contraditórias aos defensores da infalibilidade da senhora Besant. No entretanto, talvez HPB, a qual a Sra. Besant declara, naquela mesma entrevista, ter reencarnado como um homem, "vivendo no Norte" e com o qual ela está em comunicação, possa ser persuadida a ajudar a Sra. Besant a fazê-lo".


Selo indiano com a imagem de Besant
(retirado de: http://indiaopines.com/)


Note-se que à altura da entrevista Besant tinha 79 anos. A avançada idade da então Presidente da ST de Adyar e a distância temporal para os acontecimentos em discussão (30 anos) são uma das justificações para o pouco crédito dado a estas declarações de Besant. Note-se que o texto de Daniel Caldwell apenas compreende testemunhos do período. A discussão ocorrida no Nexus também não menciona esta entrevista, que já havia sido referida num texto de Charles J. Ryan, teosofista da chamada Sociedade Teosófica de Point Loma [Sociedade mãe da ST Pasadena e da ST Point Loma-Blavatskyhouse e ainda de outros grupos de menor dimensão] que analisa de forma bastante equilibrada o enigma que é o terceiro volume de "A Doutrina Secreta".

Um dos testemunhos mais interessantes referidos neste artigo vem de Bertram Keightley.

 "(...) ainda restou uma certa quantidade de material de fragmentos inacabados ou de apêndices ou de pequenos excertos sobre simbolismo, que não se encaixavam no material selecionado ou, na maior parte dos casos, não estavam em condições ou em estado de serem publicados. Obviamente perguntámos a HPB sobre este material, dado que havia sido ela - não Arch [diminutivo de Archibald Keightley], nem eu - quem o tinha posto de lado. Ela colocou esse material que havia sobrado numa das gavetas da sua escrivaninha e disse que "algum dia" produziria um terceiro volume a partir dele. Mas nunca o fez, e depois da morte de HPB, a Sra. Besant e o Sr. Mead publicaram tudo o que poderia possivelmente ser publicado como parte do volume III na edição revista. sem uma completa e extensa revisão ou reescrita".

Ryan refere ainda a divergência nas declarações de Mead, que em 1897 escreveu na revista Lucifer que "não havia visto uma só palavra" do volume III (com exceção das Instruções Esotéricas). "Outras tarefas impediram" que participasse "nos trabalhos de edição do manuscrito, e esse fardo caiu nos ombros da Sra. Besant." Acrescenta ainda Mead que "o editor havia se comprometido a publicar [esses textos] mas partilhamos na íntegra a sua opinião, a de que seria preferível imprimi-los em como artigos especiais da Lucifer do que tê-los incluído como parte de "A Doutrina Secreta".


GRS Mead


Em 1927, Mead diz algo bastante diferente:

"Nada quis ter a ver com isto [volume III]. Considerei que a disjecta ou rejecta membra dos manuscritos dos vol. I e II não estavam à altura, e que de forma alguma melhorariam o trabalho. Pensei que preferencialmente poderiam ser impressos como artigos na Lucifer, mas de modo algum poderiam formar um todo consistente. A Sra. Besant, que dava muito mais valor ao que HPB escrevia do que eu, insistiu na sua ideia e editou ela própria o material para publicação, mas mesmo depois de usados todos os fragmentos que sobraram, constituía um volume muito fino. Persuadi-la portanto a adicionar as Instruções daquilo que é conhecido como a "Secção Esotérica" ou Escola Oriental, que até então eram documentos secretos. O meu argumento era que os "ensinamentos ocultos", tal como eram considerados pelos fiéis, estavam agora nas mãos de milhares, espalhados por todo o mundo, alguns dos quais não eram de modo algum de confiança, sendo altamente provável que algum dia fossem publicados por algum indivíduo inescrupuloso ou circulassem ilegitimamente de forma privada. Felizmente, a Sra. Besant concordou e foram incluídos no volume III, com exceção de algum material que lidava com questões sobre sexo. Uma grande dose de ansiedade libertou-se da minha mente. Pensei que ao tornar estas "instruções" acessíveis ao público em geral pudesse ser possível colocar um termo a esta escola secreta interna pouco saudável. Mas esta esperança, infelizmente, não foi concretizada."

Se todas estas contradiçoes são exasperantes para quem tenta encontrar a resposta para este enigma, o cenário ainda se torna mais nebuloso se acrescentarmos outros testemunhos.

Basil Crump, que colaborou com uma das fiéis seguidoras de Blavatsky, Alice Leighton Cleather, declarou no jornal de H.N. Stokes que parte do manuscrito do terceiro e talvez o quarto volumes de "A Doutrina Secreta" foram destruídos por Blavatsky pouco tempo antes de morrer, porque não a satisfaziam. Contudo, a maior parte foi salvaguardada e levada para a Índia onde está sob costúdia até que chegue a altura certa para a sua divulgação.

Basil Crump
(1866-1945)

Outro teosofista, Thomas Green, declarou ao Canadian Theosophist que foi recrutado pela HPB Press em Londres para preparar a impressão das partes III e IV de "A Doutrina Secreta", mas que HPB destruiu as formas antes da impressão. James Pryse, que era responsável pela HPB Press nega esta possibilidade, mas Pryse só começou a trabalhar com HPB oito meses antes de esta falecer...


Referências finais


A Doutrina Secreta é um dos pilares fundamentais da Teosofia moderna. Embora seja um tesouro de sabedoria é preciso abordá-la sem fundamentalismos e não como um livro sagrado de qualquer religião.

É a própria Blavatsky que o reconhece:

“Não é que exista qualquer pretensão à infalibilidade ou à exatidão absoluta em tudo o que se diz nesta obra (…) é mais que provável que a autora não tenha conseguido dar melhor e mais clara forma às suas explicações; sendo certo que ela fez tudo o que podia, em tão desfavoráveis circunstâncias – e mais não se pode exigir a nenhum escritor. 

Ao longo das últimas semanas, o Lua em Escorpião publicou um conjunto de material significativo sobre o enigma do terceiro volume de "A Doutrina Secreta". O texto de Caldwell é talvez a principal referência sobre esta questão, contendo uma análise minuciosa de toda a sequência cronológica referente a publicação da obra central da Teosofia e limitando-se ao período mais aproximado em que os eventos principais tiveram lugar.

A segunda parte consistiu na tradução de uma troca de ideias ocorrida no melhor fórum de debate de Teosofia, o Theosophy Nexus. Com isso, foi possível ter algum conhecimento dos principais argumentos pró e contra e também perceber que é possível discutir questões fraturantes entre teosofistas.


H.P. Blavatsky


Então, que conclusões evidentes podemos tirar?

Em primeiro lugar, não há fundamento para dizer que o material do volume III é espúrio ou uma falsificação.

Em segundo lugar, há indicações claras de que havia intenção de publicar um volume III, mesmo durante a vida de Blavatsky, com base no material que havia sido escrito antes da reordenação da obra.

A partir daqui só podemos fazer conjeturas.

É altamente provável que Blavatsky fizesse muitas alterações ao manuscrito e mesmo depois de receber as primeiras provas, como era seu hábito.

Acreditar ou não que  Besant recebeu o manuscrito de HPB com o "encargo" de o publicar conforme refere no prefácio desse mesmo volume (p.14 do vol. V da edição em português de "A Doutrina Secreta"), depende da avaliação de caráter que cada um possa fazer de Besant. E em relação a isto encontramos posições bem extremadas.

Como sempre nestas questões, sobre eventos passados há muitos anos, é difícil ter repostas definitivas. Mas é certamente possível coligir os dados que existem e discuti-los com outros teosofistas, de modo civilizado, sem insultos pessoais. Como escreveu José Manuel Anacleto, no n.º 42 da revista Biosofia (p.33): "O que está em causa são enganos, não são pessoas. Seria leviano ou pretensioso alguém dizer que, nas mesmas circunstâncias, não teria cometido esses ou outros erros; e não se pode esperar ou exigir perfeição ou infalibilidade de um estudante ou investigador de esoterismo."


FIM