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sábado, 20 de abril de 2013

Revelação ou Realização: O Conflito na Teosofia (3ª parte)


Continuamos esta semana com a a palestra de J.J. van der Leeuw, lembrando que para perceber o contexto deste texto, é muito importante ler a 1ª parte. Como já aí referi, a reflexão produzida pelo teosofista holandês é muito pertinente, se bem que não concorde com algumas das suas observações.Contudo os seus alertas são importantes não só para as organizações teosóficas, mas também para aquelas de outra natureza, mas que correm o risco de reunirem características semelhantes à de um culto.

Retomando o texto, chamo especial atenção para o último parágrafo:

"O mundo mudou consideravelmente desde o século XIX. A maior mudança é a de que [o mundo] redescobriu a vida e portanto foram reestabelecidas as relações vitais que se perderam num período de dualismo. Assim, o homem moderno não mais reconhece uma dualidade entre espírito e matéria ou, em termos científicos, força e massa, mas vê estes como quantidades convertíveis que aparecem como um ou outro de acordo com a posição do observador. Uma nova perspetiva sobre a vida nasceu, que não é idealista nem materialista, nem tão pouco um compromisso entre os dois. Podemos defini-lo como um novo realismo à luz do qual o idealismo aparece tão gasto como o materialismo. A sua realidade não é um mundo ou mundos além, mas o significado deste mundo como outro mundo qualquer, o homem estando tão perto da realidade do mundo físico como em qualquer outro mundo em que ele possa viver. De modo similar, o sentido de realização da vida não é visto como uma apoteose longínqua de derradeira perfeição mas a realização da vida aqui e agora.

O próprio homem é a porta aberta para realidade, ele é o foco através do qual a realidade se transforma em mundivisão e com a sua própria experiência do momento, ele pode portanto encontrar uma porta aberta para toda a vida. Este não é um estado místico, não há “fusão com o absoluto”, se tal coisa fosse possível. É um processo que tem lugar na efetiva experiência do momento e no local onde o homem se encontra. A experiência que se tem, nesse efetivo momento e local é a porta aberta para a realidade – nada mais. É no aqui e agora que o caminho da vida deve ser encontrado.

Os homens e as mulheres dos novos tempos não têm por isso tempo para uma filosofia dualista que prega um idealismo gasto, não têm interesse numa filosofia do Além. E é isso, que a Teosofia é, aos olhos deles. Nasceu numa era de dualismo, aliou-se com um dos dois elementos, o espiritual,  e a sua objetividade num mundo do além e a sua perfeição num tempo futuro, é a esse respeito mais uma relíquia do passado que uma promessa de futuro.

A menos que a sua filosofia passe a ser daqui e de agora, reconhecendo que a realidade ou vida só podem ser abordadas através da efetiva experiência, e de mais forma nenhuma, não existe futura para ela [a Teosofia], e apenas terá não mais que um interesse histórico.

Outra característica do século XIX foi o medo da vida. Quando o homem está desligado da vida ele tem receio dela e procura um abrigo ou um refúgio. Ele procura uma certeza final, um sistema que resolva todos os problemas da vida, para que a Vida, que ele teme, não o possa apanhar desprevenido ou transtornar a sua confortável existência. Portanto, um sistema filosófico que afirma resolver os problemas da vida e que seja capaz de explicar tudo o que acontece tem um grande apelo para um homem desse género.

A Teosofia era uma filosofia deste tipo, alegava ter uma resposta para os problemas da vida, de ter solucionado os seus enigmas. Mesmo os seus inimigos devem reconhecer que os teosofistas são inigualáveis em explicar tudo o que acontece, embora contraditórios. Com um virtuosismo verdadeiro eles executam acrobacias mentais em que podem afirmar ou acreditar numa coisa e mesmo assim encontrar uma explicação quando os factos da vida os contradizem.

Aqui o desejo pela verdade não é tão grande como o desejo de fazer a vida encaixar num sistema preconcebido. O homem sente-se seguro apenas quando nada do que lhe acontece diariamente escapa ao sistema de explicação racional que ele construiu. Quando algo lhe acontece, ele quer explicar porque aconteceu e para que serve no fim de contas. Assim ele encaixa-o no seu sistema de pensamento, racionalizando o acontecimento. Quando Krishnamurti começou a ensinar, a maior dificuldade para os teosofistas não era tanto o facto de não entenderam os ensinamentos, mas sim de se encaixarem no seu sistema de pensamento.  A questão não era “o que quer ele dizer?”, mas sim “como pode isto ser reconciliado com o que foi ensinado anteriormente?”. A vida contudo, nunca pode ser reconciliada com ideias preconcebidas, nem pode ser racionalizada. A vida não é uma inteligência, portanto nem é lógica nem racional, não tem causa ou propósito. A tentativa de racionalizar o sofrimento que nos surge em vida, mostrar que o merecemos, e que é “bom para alguma coisa” no fim de contas, está portanto condenado a falhar. Não podemos domesticar a vida desta maneira.

Krishnamurti, na altura em que foi publicado
 "Aos Pés do Mestre", de quem se diz ter sido
o autor, embora alguns o
atribuam a Leadbeater.


É curioso ver como o homem fica apavorado perante a ideia de que a vida está para lá do que pode ser explicado. Ele quer consolo, uma droga que adormeça o seu sofrimento ou uma espécie de calmante para dormir, que lhe dê a ilusão de bem-aventurança. O teosofista tinha esse consolo e esse soporífero. Nenhum sofrimento poderia atingi-lo, mas ele acalmaria a sua humanidade indignada através de um processo de racionalização em que ele provava a si próprio que o sofrimento tinha de lhe bater à porta, e que isso seria bom para ele. Estas tentativas de explicação, contudo, cegavam o homem para o verdadeiro significado das coisas que lhe aconteciam. Elas desviam a sua atenção do acontecimento em si, que ocorre aqui e agora, e conduzem a uma causa ou resultado imaginários. Assim o significado do acontecimento que reside na efetiva experiência, escapa-lhe e ele não está nem mais rico, nem mais sábio pelo seu sofrimento.

De um modo análogo, a Teosofia afirma ter uma explicação para os grandes problemas da vida: porque foi o universo criado e como, o que acontece após a morte, para que vive o homem e em que se tornará ele. Aqui uma vez mais, o processo de racionalização desvia a atenção do mistério da vida, que apenas pode ser experienciado no presente. A vida não é um problema a ser resolvido, mas um mistério a ser experienciado. É graças à extrema facilidade com que a Teosofia explica todos os problemas e acontecimentos que os verdadeiros artistas e pensadores a têm evitado. Eles sabem demasiado bem que a vida não pode ser contida num qualquer sistema, e que o propósito do pensamento não é explicar a vida, mas entendê-la, por experiência.

Um sistema de pensamento sempre traz um estado de certeza mental e vacila apenas perante um único temor, o de ser perturbado pela dúvida. É por essa razão que não há espaço para pensadores dentro da Sociedade Teosófica. Um pensador é sempre uma influência perturbadora. A Teosofia, ao afirmar oferecer um sistema de pensamento que explica a vida e os seus problemas, não tem só afugentado pensadores e artistas, mas tem também atraído mentes medíocres que procuram conforto intelectual e não a verdade. Isto explica porque o movimento teosófico, nos seus cinquenta anos de existência, tem de forma muito particular, tido falta de pensamento criativo ou original, pois estes eram automaticamente excluídos.

Uma vez mais, a grande mudança que teve lugar no mundo passou completamente ao lado da Sociedade Teosófica. O homem moderno redescobriu a vida e consequentemente perdeu fé e interesse em qualquer dos sistemas de pensamento que afirmam explicar a vida ou resolver os seus enigmas. Ele sabe demasiado bem que a vida só pode ser entendida pela realização que vem da experiência, não por quaisquer equações ou doutrinas. A nossa idade moderna emergiu para além dessa consciência estreita que era tudo o que antes o homem reconhecia nas suas especulações. Ele está agora atento ao inconsciente, sem o qual o consciente permanece ininteligível.

Ele sabe que a vida, não sendo consciência é irracional, não sendo lógica, nem justa. É pois em vão que ele procura explicações éticas dos seus acontecimentos ou resultados morais das agruras que ela inflige em nós. Estes nunca podem explicar ou justificar os eventos que ocorrem. O significado do acontecimento só pode ser apreendido através da efetiva experiência do mesmo, e toda a procura por um abrigo, refúgio ou consolação desvia o homem dessa experiência. O homem moderno, portanto, não tem qualquer interesse num sistema de pensamento, por mais engenhoso e elaborado que seja, que dissipe os seus medos e lhe ofereça uma falsa tranquilidade nas suas tentativas de explicar a vida. Ele não quer ser protegido, ele não procura o conforto quente e sonolento da lareira. Ele antes preferiria sair à rua só e sem roupa e enfrentar a tempestade da vida, do que ficar seguro num abrigo que a exclui. Ele preferiria perecer nessa tempestade do que viver uma falsa segurança. Ele não quer procurar a felicidade, mas a própria vida, a realidade. Portanto, uma filosofia que lhe oferece a suposta segurança da explicações e soluções não tem qualquer interesse para ele, aquelas não são mais válidas. Quem nestes tempos modernos alega ter resolvido os problemas da vida, apenas conseguirá se comprometer.

Se há algum futuro para a Sociedade Teosófica, ela terá de renunciar completamente à sua reivindicação de ter resolvido os enigmas da vida e de ser um repositório de verdade. Em vez disso terá de unir todos os que procuram a verdade e a realidade, não obstante estas possam trazer sofrimento e desconforto. O buscador da verdade acolhe a perturbação e a dúvida, as duas coisas que sempre foram e são mais temidas pelos teosofistas.

Mas a Sociedade Teosófica ainda respira a atmosfera do último século num outro aspeto: no desejo de unir numa fraternidade aqueles que pensam ou sentem de modo semelhante. Por conseguinte, a Sociedade Teosófica visava formar um núcleo de fraternidade. Um núcleo tal porém, derrota o seu próprio propósito. Não pode escapar a se tornar uma fraternidade excluindo os irmãos indesejados. No momento em que unimos um número de pessoas num núcleo assim, criámos uma seita, um grupo separado e amuralhado do resto do mundo e portanto da vida.

Mostramos que isto é verdade, cada vez que falamos, como muitas vezes fazemos, “do mundo exterior”. As próprias palavras dão a entender que nós próprios estamos dentro de alguma coisa. Dentro de quê? Dentro de algo que mantém aquele “mundo exterior” fora desse mesmo algo! Dentro de uma barreira que nós erigimos à volta de nós e pelo meio da qual nós impedimos a entrada àqueles que pensam de modo diferente. Essa barreira de crenças e doutrinas elaboradas tem tão eficientemente impedido a entrada do temido “mundo exterior”, de tal modo que nem o ar fresco desse mundo conseguiu penetrar na sua solidez interna, e a Sociedade tem respirado desde há cinquenta anos nada mais que a atmosfera dos seus próprios pensamentos e crenças. Nas suas reuniões foram sempre os teosofistas que falaram a outros teosofistas sobre as doutrinas teosóficas que todos eles já conheciam. A única coisa que foi unanimemente evitada foi a introdução de ideias externas que pudessem desafiar ou pôr em dúvida as doutrinas vigentes. A exclusão do mundo exterior tem sido evidente no quotidiano das lojas. Foi na intimidade confortável e asfixiante do quotidiano das lojas que a ortodoxia teosófica poderia prosperar. Ali, num pequeno círculo de mentes medíocres, todos pensando e acreditando de modo semelhante, uma fraternidade calorosa poderia surgir, unindo todos na certeza encantadora de possuir a verdade esotérica, enquanto o mundo exterior vivia na escuridão.

Na minha última digressão eu visitei uma loja, da qual o presidente me disse ser “uma família feliz”. Isto despertou as minhas dúvidas, pois eu sei como são as famílias felizes. Então ele continuou, dizendo que uns anos antes havia um membro que estava sempre a questionar e a pôr tudo em causa, causando perturbação nos seus encontros harmoniosos. Mas agora esse membro tinha deixado a sua loja e tudo estava em harmonia novamente. Ele quis dizer, é claro, que o torpor feliz da sua inatividade intelectual, que havia sido perturbada por algum tempo pelo único membro efetivamente vivo, tinha sido reestabelecido."

Continua na próxima semana...

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