Continuamos esta semana com a a palestra de J.J. van der Leeuw, lembrando que para perceber o contexto deste texto, é muito importante ler a 1ª parte. Como já aí referi, a reflexão produzida pelo teosofista holandês é muito pertinente, se bem que não concorde com algumas das suas observações.Contudo os seus alertas são importantes não só para as organizações teosóficas, mas também para aquelas de outra natureza, mas que correm o risco de reunirem características semelhantes à de um culto.
Retomando o texto, chamo especial atenção para o último parágrafo:
"O mundo mudou consideravelmente desde o século XIX. A maior
mudança é a de que [o mundo] redescobriu a vida e portanto foram
reestabelecidas as relações vitais que se perderam num período de dualismo.
Assim, o homem moderno não mais reconhece uma dualidade entre espírito e
matéria ou, em termos científicos, força e massa, mas vê estes como quantidades
convertíveis que aparecem como um ou outro de acordo com a posição do
observador. Uma nova perspetiva sobre a vida nasceu, que não é idealista nem
materialista, nem tão pouco um compromisso entre os dois. Podemos defini-lo
como um novo realismo à luz do qual o idealismo aparece tão gasto como o
materialismo. A sua realidade não é um mundo ou mundos além, mas o significado
deste mundo como outro mundo qualquer, o homem estando tão perto da realidade
do mundo físico como em qualquer outro mundo em que ele possa viver. De modo
similar, o sentido de realização da vida não é visto como uma apoteose
longínqua de derradeira perfeição mas a realização da vida aqui e agora.
O próprio homem é a porta aberta para realidade, ele é o
foco através do qual a realidade se transforma em mundivisão e com a sua
própria experiência do momento, ele pode portanto encontrar uma porta aberta
para toda a vida. Este não é um estado místico, não há “fusão com o absoluto”,
se tal coisa fosse possível. É um processo que tem lugar na efetiva experiência
do momento e no local onde o homem se encontra. A experiência que se tem, nesse
efetivo momento e local é a porta aberta para a realidade – nada mais. É no
aqui e agora que o caminho da vida deve ser encontrado.
Os homens e as mulheres dos novos tempos não têm por isso
tempo para uma filosofia dualista que prega um idealismo gasto, não têm
interesse numa filosofia do Além. E é isso, que a Teosofia é, aos olhos deles.
Nasceu numa era de dualismo, aliou-se com um dos dois elementos, o espiritual, e a sua objetividade num mundo do além e a sua
perfeição num tempo futuro, é a esse respeito mais uma relíquia do passado que
uma promessa de futuro.
A menos que a sua filosofia passe a ser daqui e de agora,
reconhecendo que a realidade ou vida só podem ser abordadas através da efetiva
experiência, e de mais forma nenhuma, não existe futura para ela [a Teosofia],
e apenas terá não mais que um interesse histórico.
Outra característica do século XIX foi o medo da vida.
Quando o homem está desligado da vida ele tem receio dela e procura um abrigo
ou um refúgio. Ele procura uma certeza final, um sistema que resolva todos os
problemas da vida, para que a Vida, que ele teme, não o possa apanhar
desprevenido ou transtornar a sua confortável existência. Portanto, um sistema
filosófico que afirma resolver os problemas da vida e que seja capaz de
explicar tudo o que acontece tem um grande apelo para um homem desse género.
A Teosofia era uma filosofia deste tipo, alegava ter uma
resposta para os problemas da vida, de ter solucionado os seus enigmas. Mesmo
os seus inimigos devem reconhecer que os teosofistas são inigualáveis em
explicar tudo o que acontece, embora contraditórios. Com um virtuosismo
verdadeiro eles executam acrobacias mentais em que podem afirmar ou acreditar
numa coisa e mesmo assim encontrar uma explicação quando os factos da vida os
contradizem.
Aqui o desejo pela verdade não é tão grande como o desejo de
fazer a vida encaixar num sistema preconcebido. O homem sente-se seguro apenas
quando nada do que lhe acontece diariamente escapa ao sistema de explicação
racional que ele construiu. Quando algo lhe acontece, ele quer explicar porque
aconteceu e para que serve no fim de contas. Assim ele encaixa-o no seu sistema
de pensamento, racionalizando o acontecimento. Quando Krishnamurti começou a
ensinar, a maior dificuldade para os teosofistas não era tanto o facto de não
entenderam os ensinamentos, mas sim de se encaixarem no seu sistema de
pensamento. A questão não era “o que
quer ele dizer?”, mas sim “como pode isto ser reconciliado com o que foi
ensinado anteriormente?”. A vida contudo, nunca pode ser reconciliada com
ideias preconcebidas, nem pode ser racionalizada. A vida não é uma
inteligência, portanto nem é lógica nem racional, não tem causa ou propósito. A
tentativa de racionalizar o sofrimento que nos surge em vida, mostrar que o
merecemos, e que é “bom para alguma coisa” no fim de contas, está portanto
condenado a falhar. Não podemos domesticar a vida desta maneira.
Krishnamurti, na altura em que foi publicado "Aos Pés do Mestre", de quem se diz ter sido o autor, embora alguns o atribuam a Leadbeater. |
É curioso ver como o homem fica apavorado perante a ideia de
que a vida está para lá do que pode ser explicado. Ele quer consolo, uma droga
que adormeça o seu sofrimento ou uma espécie de calmante para dormir, que lhe
dê a ilusão de bem-aventurança. O teosofista tinha esse consolo e esse
soporífero. Nenhum sofrimento poderia atingi-lo, mas ele acalmaria a sua
humanidade indignada através de um processo de racionalização em que ele
provava a si próprio que o sofrimento tinha de lhe bater à porta, e que isso
seria bom para ele. Estas tentativas de explicação, contudo, cegavam o homem
para o verdadeiro significado das coisas que lhe aconteciam. Elas desviam a sua
atenção do acontecimento em si, que ocorre aqui e agora, e conduzem a uma causa
ou resultado imaginários. Assim o significado do acontecimento que reside na
efetiva experiência, escapa-lhe e ele não está nem mais rico, nem mais sábio
pelo seu sofrimento.
De um modo análogo, a Teosofia afirma ter uma explicação
para os grandes problemas da vida: porque foi o universo criado e como, o que
acontece após a morte, para que vive o homem e em que se tornará ele. Aqui uma
vez mais, o processo de racionalização desvia a atenção do mistério da vida,
que apenas pode ser experienciado no presente. A vida não é um problema a ser
resolvido, mas um mistério a ser experienciado. É graças à extrema facilidade com
que a Teosofia explica todos os problemas e acontecimentos que os verdadeiros
artistas e pensadores a têm evitado. Eles sabem demasiado bem que a vida não
pode ser contida num qualquer sistema, e que o propósito do pensamento não é
explicar a vida, mas entendê-la, por experiência.
Um sistema de pensamento sempre traz um estado de certeza
mental e vacila apenas perante um único temor, o de ser perturbado pela dúvida.
É por essa razão que não há espaço para pensadores dentro da Sociedade
Teosófica. Um pensador é sempre uma influência perturbadora. A Teosofia, ao
afirmar oferecer um sistema de pensamento que explica a vida e os seus
problemas, não tem só afugentado pensadores e artistas, mas tem também atraído
mentes medíocres que procuram conforto intelectual e não a verdade. Isto
explica porque o movimento teosófico, nos seus cinquenta anos de existência,
tem de forma muito particular, tido falta de pensamento criativo ou original,
pois estes eram automaticamente excluídos.
Uma vez mais, a grande mudança que teve lugar no mundo
passou completamente ao lado da Sociedade Teosófica. O homem moderno
redescobriu a vida e consequentemente perdeu fé e interesse em qualquer dos
sistemas de pensamento que afirmam explicar a vida ou resolver os seus enigmas.
Ele sabe demasiado bem que a vida só pode ser entendida pela realização que vem
da experiência, não por quaisquer equações ou doutrinas. A nossa idade moderna
emergiu para além dessa consciência estreita que era tudo o que antes o homem
reconhecia nas suas especulações. Ele está agora atento ao inconsciente, sem o
qual o consciente permanece ininteligível.
Ele sabe que a vida, não sendo consciência é irracional, não
sendo lógica, nem justa. É pois em vão que ele procura explicações éticas dos
seus acontecimentos ou resultados morais das agruras que ela inflige em nós.
Estes nunca podem explicar ou justificar os eventos que ocorrem. O significado
do acontecimento só pode ser apreendido através da efetiva experiência do
mesmo, e toda a procura por um abrigo, refúgio ou consolação desvia o homem
dessa experiência. O homem moderno, portanto, não tem qualquer interesse num
sistema de pensamento, por mais engenhoso e elaborado que seja, que dissipe os
seus medos e lhe ofereça uma falsa tranquilidade nas suas tentativas de
explicar a vida. Ele não quer ser protegido, ele não procura o conforto quente
e sonolento da lareira. Ele antes preferiria sair à rua só e sem roupa e
enfrentar a tempestade da vida, do que ficar seguro num abrigo que a exclui.
Ele preferiria perecer nessa tempestade do que viver uma falsa segurança. Ele
não quer procurar a felicidade, mas a própria vida, a realidade. Portanto, uma
filosofia que lhe oferece a suposta segurança da explicações e soluções não tem
qualquer interesse para ele, aquelas não são mais válidas. Quem nestes tempos
modernos alega ter resolvido os problemas da vida, apenas conseguirá se
comprometer.
Se há algum futuro para a Sociedade Teosófica, ela terá de
renunciar completamente à sua reivindicação de ter resolvido os enigmas da vida
e de ser um repositório de verdade. Em vez disso terá de unir todos os que
procuram a verdade e a realidade, não obstante estas possam trazer sofrimento e
desconforto. O buscador da verdade acolhe a perturbação e a dúvida, as duas coisas
que sempre foram e são mais temidas pelos teosofistas.
Mas a Sociedade Teosófica ainda respira a atmosfera do
último século num outro aspeto: no desejo de unir numa fraternidade aqueles que
pensam ou sentem de modo semelhante. Por conseguinte, a Sociedade Teosófica
visava formar um núcleo de fraternidade. Um núcleo tal porém, derrota o seu
próprio propósito. Não pode escapar a se tornar uma fraternidade excluindo os
irmãos indesejados. No momento em que unimos um número de pessoas num núcleo
assim, criámos uma seita, um grupo separado e amuralhado do resto do mundo e
portanto da vida.
Mostramos que isto é verdade, cada vez que falamos, como
muitas vezes fazemos, “do mundo exterior”. As próprias palavras dão a entender
que nós próprios estamos dentro de alguma coisa. Dentro de quê? Dentro de algo
que mantém aquele “mundo exterior” fora desse mesmo algo! Dentro de uma
barreira que nós erigimos à volta de nós e pelo meio da qual nós impedimos a
entrada àqueles que pensam de modo diferente. Essa barreira de crenças e
doutrinas elaboradas tem tão eficientemente impedido a entrada do temido “mundo
exterior”, de tal modo que nem o ar fresco desse mundo conseguiu penetrar na
sua solidez interna, e a Sociedade tem respirado desde há cinquenta anos nada
mais que a atmosfera dos seus próprios pensamentos e crenças. Nas suas reuniões
foram sempre os teosofistas que falaram a outros teosofistas sobre as doutrinas
teosóficas que todos eles já conheciam. A única coisa que foi unanimemente
evitada foi a introdução de ideias externas que pudessem desafiar ou pôr em
dúvida as doutrinas vigentes. A exclusão do mundo exterior tem sido evidente no
quotidiano das lojas. Foi na intimidade confortável e asfixiante do quotidiano
das lojas que a ortodoxia teosófica poderia prosperar. Ali, num pequeno círculo
de mentes medíocres, todos pensando e acreditando de modo semelhante, uma
fraternidade calorosa poderia surgir, unindo todos na certeza encantadora de
possuir a verdade esotérica, enquanto o mundo exterior vivia na escuridão.
Na minha última digressão eu visitei uma loja, da qual o
presidente me disse ser “uma família feliz”. Isto despertou as minhas dúvidas,
pois eu sei como são as famílias felizes. Então ele continuou, dizendo que uns
anos antes havia um membro que estava sempre a questionar e a pôr tudo em
causa, causando perturbação nos seus encontros harmoniosos. Mas agora esse
membro tinha deixado a sua loja e tudo estava em harmonia novamente. Ele quis
dizer, é claro, que o torpor feliz da sua inatividade intelectual, que havia
sido perturbada por algum tempo pelo único membro efetivamente vivo, tinha sido
reestabelecido."
Continua na próxima semana...
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