"Revelação ou
realização: O Conflito na Teosofia
Houve um tempo no qual nenhuma dúvida parecia possível sobre
o futuro da ST. Tinha-nos sido dito que os Mestres da Sabedoria tinham-na
fundado e que seria a pedra angular das religiões do futuro [NT: Sobre isto,
ver aqui].
Consequentemente a possibilidade do seu falhanço dificilmente ocorria aos seus
membros. Os impérios poderiam desfazer-se, as igrejas podiam deixar de sê-lo,
mas a ST continuaria através dos tempos.
Recentemente, contudo, sérias dúvidas têm surgido nas mentes
de muitos relativamente a este futuro. O mundo em geral não está interessado em
Teosofia ou no movimento teosófico como estava há quarenta anos atrás. Na
altura, a ST sofria oposição por ser um perigoso movimento pioneiro. Agora é
olhada com indiferença e encarada mais como uma relíquia do passado do que uma
promessa de futuro. Praticamente em todas as Secções há uma grande redução da
venda de livros mostrando que a literatura que já foi atrativa para o público,
não é mais desejada.
Mais sério ainda que a indiferença do mundo moderno para com
o movimento é o conflito dentro dele. Não estou a falar do conflito de
personalidades, estes não interessam. O conflito é entre diferentes pontos de
vista, visões de vida. Eu definiria estas como o conflito entre revelação e
realização. Este conflito é inerente ao movimento teosófico desde a sua
criação, e tem-se agudizado desde 1925. Foi então que por um lado a revelação
se tornou irreal e portanto questionável, e por outro lado a realização foi
enfatizada por Krishnamurti como o caminho de vida.
Um sistema de revelação só é possível quando existe um
oráculo, um canal de revelação, cuja autoridade não pode ser questionada. Uma
pluralidade de oráculos é letal para a revelação. Quando em 1925 foi anunciado
que o Instrutor do Mundo teria doze apóstolos como já tinha acontecido na Palestina
[NT: há cerca de 2000 anos…], e quando o próprio Krishnamurti negou ter
quaisquer discípulos ou apóstolos foi inevitável que os membros se perguntassem
se aquela revelação, assim como as anteriores, eram ou não de confiar.
Anteriormente, os movimentos cerimoniais tinham ganho
adeptos muito pelo facto de serem anunciados como uma preparação do trabalho do
Instrutor vindouro. Em nome dele e sob sua autoridade, esses movimentos eram
lançados por diante e aqueles que tomavam parte neles sentiam que estavam a
fazer o trabalho do Instrutor. Quando ele começava a ensinar e negava o valor
da cerimónia, chamando-a um obstáculo à libertação, eram novamente muitos que
perguntavam a si próprios como poderia esta contradição ser explicada. As explicações avançadas eram muitas e
engenhosas, mas o facto é que a fé na revelação ficou abalada para sempre. A
consequência disto foi que o trabalho e o autossacrifício dos membros que se
baseavam nesta fé em revelações, decaiu consideravelmente. No coração de muitos
a dúvida e o desespero tomaram o lugar da crença inquestionável. O resultado
inevitável é um processo de desintegração, em que muitos dos mais importantes
membros deixam o movimento no qual deixam de ter confiança.
É minha intenção nesta palestra procurar as causas desta
desintegração e se possível, encontrar uma cura. Devo portanto exercer o meu
poder de crítica de modo muito aberto. A crítica tem sempre sido extremamente
impopular na ST. Teoricamente a nossa plataforma é livre, mas na prática aquele
que pense de forma diferente do resto, embora seja perfeitamente livre de o
fazer, não encontrará nenhuma plataforma para expressar o seu pensamento. Tem
sempre havido receio de alguma ideia que possa perturbar a harmonia entre os
membros. A crítica, mesmo que expressa com gentileza, foi imediatamente
rotulada como “ataques justos e cruéis”, como não-fraterna e em última
instância como influência dos poderes das trevas. É a atitude mental
medieval, onde o cheiro sulfuroso da atividade satânica é detetado sempre que uma
opinião é expressa de forma distinta da sua.
Eu falo por amor à verdade, não para atacar a Teosofia. Uma
coisa que eu gostava de vos pedir, é que acreditem minimamente na minha sincera
intenção de ajudar os nossos membros no presente estado de confusão, e que não
suspeitem de intenções sinistras da minha parte. Sinto-me como um médico à
beira da cama do paciente. Ele deve procurar os órgãos doentes e só pode ajudar
o paciente procurando todas as causas dos seus problemas de saúde. Quando um
médico diz que o coração do paciente está doente, nós não o chamamos de
não-fraterno ou dizemos que ele está a atacar o paciente da forma mais cruel. Não
dizemos que ele deve procurar só o que há de bom no paciente e não o mau, e que
ele deve enfatizar o bom estado dos pulmões e não a má condição do coração. Eu
tenho de falar dos sintomas de doença do movimento teosófico e é apenas através
de uma crítica completa que eu posso analisá-los.
Ao criticar a Teosofia nós devemos antes de tudo perguntar:
que Teosofia? Historicamente a palavra quer dizer a experiência do divino,
distinguindo-se de teologia que é a discussão sobre Deus. A experiência da
causa última, da realidade, da vida, da verdade, está para lá de qualquer
discussão. Existe sempre que um homem a tem e não pode ser criticada ou negada.
Em segundo lugar, a palavra [Teosofia] tem vindo a ser usada (…) como “um
sistema arcaico de sabedoria esotérica à guarda de uma fraternidade de
Adeptos.”
Irei-me pronunciar sobre esta última conceção mais adiante,
pois no momento não estou a tê-la em conta. Em terceiro lugar, Teosofia
significa o sistema de doutrinas apresentadas na literatura ou em palestras
desde o início da ST. Isto é o que o mundo em geral reconhece como Teosofia.
Por fim, existe a prática em importantes centros de trabalho teosófico, onde,
tendo em conta o trabalho presentemente feito e os objetivos realizados diante
das pessoas, podemos ver aquilo que é considerado como importante. De momento
estou a falar apenas destas duas últimas formas de Teosofia, ou seja, aquelas
que foram apresentadas ao mundo em livros ou palestras ou que podem ser
testemunhadas nos centros de trabalho teosófico.
Imagem de 1890 da sede da ST em Adyar (foto tirada de blavatskyarchives.com) |
Esta Teosofia nasceu na Era Vitoriana. O fim do século XIX
foi um período divorciado da vida. O homem tinha perdido o sentido das relações
vitais e tinha tornado em algo absoluto coisas que só tinham sentido como
relações vivas. Assim, ele olhava para o mundo que o rodeava, como um universo
objetivo diante dele, independente da sua consciência. Na verdade, o que nós
chamamos de mundo que nos rodeia é a forma como nós interpretamos a realidade
que afeta a nossa consciência. Esta interpretação nos termos da nossa
consciência é a nossa mundivisão, que é real apenas em relação à consciência de
que faz parte. Desde que esta relação seja reconhecida não há problema. A vida
ou a realidade afeta o homem e através dele é externalizada como uma mundivisão
na sua consciência. O homem é o foco através do qual este processo acontece, e
existe um fluxo ininterrupto de realidade da vida o afetando e, através dele,
se tornando numa mundivisão.
Quando contudo, o homem esquece que ele é apenas um foco da
realidade e sente-se como um ser distinto, uma alma ou um espírito, tudo muda.
Em vez de reconhecer que aquilo que chama de mundo é a sua interpretação, em
termos da consciência, da realidade que o afeta, ele objetiva essa mundivisão e
torna-o em algo absoluto, oposta a ele: o mundo da matéria. De um modo similar
ele separa-se a si próprio daquela vida que cria a mundivisão nele, objetivando
também isso e chamando-a de Deus ou Espírito. Assim, ele encontra-se a si
próprio isolado entre dois mundos: um mundo de matéria densa externamente e um
mundo espiritual subtil internamente. Doravante, esta dualidade toma conta da
sua vida e na prática ele tem de escolher entre os seus dois elementos. Esta
escolha é entre o materialismo e o idealismo.
No século XIX esta antítese era bastante real, e a Teosofia,
baseada naquele dualismo, identificava-se com a visão idealista opondo-se à
materialista. Lutou contra o materialismo dos seus dias e era francamente
idealista ou espiritual na sua filosofia. Ainda o é; na doutrina teosófica, o
mundo espiritual é olhado como o mundo real onde o homem, o Eu Superior tem o
seu verdadeiro lar. Desse mundo ele descende até estes mundos inferiores da
matéria onde através dos seus “corpos inferiores” ele ganha experiência.
Quando, através da experiência o seu Ego se torna perfeito, ele retorna para
esse mundo do além, de onde veio.
Desse modo, a Teosofia é uma filosofia do Além, a sua
realidade última não é este mundo físico mas um mundo afastado desse vários
estádios. A sua realização não está no presente mas no futuro quando a
perfeição for atingida. Assim, no espaço e no tempo, é uma filosofia do Além."
Continua na próxima semana.
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