Com o título original “What Dreams May Come” (traduzido no Brasil para “Amor Além da Vida”), a película de
1997 realizada por Vincent Ward baseia-se no livro homónimo de Richard Matheson
(autor de “Eu sou a lenda”), editado nos EUA em 1978.
Recentemente tive a oportunidade
de ler o livro (editado no Brasil pela Butterfly Editora), logo após de ter
visionado a adaptação para o cinema e fiquei abismado com a diferença de
qualidade entre o livro e o filme. Normalmente o livro é sempre melhor que o
filme e neste caso isso é indubitavelmente verdade. Não é de espantar que um
produtor de Hollywood tenha a dito a Matheson que mais valia terem filmado as
páginas do seu livro.
O começo da história é muito
simples: Chris Nielsen é vítima de um acidente de viação, não consegue resistir
aos ferimentos e morre.
Matheson fez muita pesquisa antes
de escrever o livro. No prólogo ele refere que:
“Como o seu tema [do romance] é a
sobrevivência após a morte, é imprescindível que você [o leitor] perceba, antes
de ler a história, que apenas um aspecto dele é ficcional: as personagens e as
suas relações. Com algumas excepções, todos os demais detalhes são o resultado
exclusivo de pesquisa.”
No fim do livro, Matheson lista a
bibliografia consultada. Lá é possível encontrar muitos livros sobre
reencarnação, karma e estados pós-morte e alguns de autores teosofistas, com
destaque para o de Geoffrey Farthing, “When we die”, editado em 1968. Outros
autores conhecidos são Evans-Wentz (“O livro tibetano dos mortos”), Dion
Fortune (“Através dos portais da morte”) e Max Heindel (“The passing-and life
afterward”).
Geoffrey Hodson e Charles Leadbeater, do campo da chamada
neo-teosofia (ou pseudo-teosofia para os mais críticos) também estão na lista. Outro
dos livros citados é de Raymond Moody Jr. que também já foi mencionado mais do
que uma vez no Lua em Escorpião (veja aqui e aqui).
Com tantas referências, não surpreende
que o livro contenha muitos detalhes preciosos, mas o seu principal mérito está
na capacidade de Matheson, que fazendo uso de todos os seus recursos de
escritor, consegue nos dar uma perspectiva de alguns fenómenos bastante
reveladora. Serve como exemplo, a saída do corpo no momento da morte de Chris:
“Eu conseguia sentir a vida
esvaindo, ouvia os sons de novo, muito mais altos agora; centenas de pequenas tiras
sendo arrancadas. Eu não tinha sensação de gosto ou cheiro. Já não sentia os
dedos, meus pés. O torpor começava a subir pelas pernas. Lutei para recuperar
as sensações, mas não consegui. Algo frio passava pelo meu estômago, pelo meu peito
e deteve-se gelidamente em torno do meu coração. Senti meu coração bater lento,
como o tambor da procissão de um funeral.”
Mais à
frente:
“Comecei a mexer-me por meio de uma abertura na cabeça. Havia um
zunido, uma ressonância, algo correndo muito rápido, como um riacho através de
um desfiladeiro estreito. Senti que começava a levantar-me. Eu era uma bolha,
subindo e descendo. Pensei ter visto um túnel acima de mim, escuro e infinito.
Virei-me e fiquei assombrado ao ver meu corpo deitado na cama. Coberto de ataduras e imóvel. Alimentado por intermédio de
tubos plásticos. Eu estava conectado a ele por um cordão que brilhava com uma
luz prateada. Fino, ele se unia ao meu corpo pelo topo da cabeça. Então, ele
entrou na minha cabeça. O cordão prateado. Pensei: meu Deus, o cordão prateado.
Eu sabia que ele era tudo o que mantinha meu corpo vivo.”
Depois de perceber que tinha abandonado o seu corpo físico, Chris
Nielsen vai observar a chamada “segunda morte”, onde se dá a separação dos
princípios superiores dos inferiores, estes últimos ficando em decomposição no
chamado Kâma-loka. Este processo ocorre a meio de uma sessão espírita, e serve
para ilustrar o porquê de algumas comunicações espíritas não serem verdadeiras,
ou seja, de não ser realmente o falecido que está a ser contactado.
Chris olha
estarrecido para sua forma astral:
“De repente, parei de andar e olhei com horror a sala de estar. Para
mim mesmo.
Minha mente não conseguia reagir. Eu estava atordoado pela visão.
Eu sabia que estava de pé onde eu estava.
Mas eu também estava na sala de estar. Vestido com roupas idênticas.
Meu rosto, meu corpo. Eu, sem dúvida.
Mas como isso era possível?
Eu não estava naquele corpo. Então, entendi. Eu apenas observava-o.
Mirando-o, aproximei-me. A minha figura tinha a forma de um corpo normal. Não
havia expressão em seu rosto.
Poderia ser uma figura em um museu de cera, com exceção de que ela se
movia lentamente como se fosse um autômato movido a corda.”
Mais adiante:
“A figura não estava respondendo por conta própria. Ela apenas repetia
o que a mente de Perry [o médium] lhe sugeria. Não era eu, absolutamente. Era
uma marionete que ele [o médium] construíra com o poder da sua vontade.”
Chris vai conhecendo depois como funciona o que parecem ser os
subplanos do mundo astral, desde os mais elevados aos mais inferiores, onde depois
terá de penetrar para tentar resgatar a sua mulher, que entretanto se suicida.
O pós-morte dos suicidas é reconhecido como muito complicado quer pelas
religiões, quer pelo Espiritismo e Teosofia. Raymond Moody Jr. tem num dos seus
livros a descrição de uma experiência de quase-morte de um suicídio falhado,
onde a pessoa percebe quase de imediato que os seus problemas não ficaram
resolvidos com essa fuga. Felizmente não morreu, sobrevivendo para contar a
experiência ao médico norte-americano. Moody lançou “Vida depois da vida” em
1975 e espoletou a discussão sobre a realidade das experiências de quase-morte.
Sylvia Cranston no seu extraordinário livro escrito a meias com Carey Williams,
“Reincarnation: A New Horizon in Science, Religion and Society” menciona o caso
de um psiquiatra que usava com sucesso cópias dessa parte do livro de Moody Jr.
para dissuadir alguns dos seus pacientes com ideação suicida.
Aliás a descrição do estado dos suicidas é uma das poucas partes
informativas do filme.
O livro é de leitura muito fácil e apelativa, sendo muito menos
lamechas que o filme, onde a situação de drama é muito agravada, pois ambos os
filhos de Chris também morrem. Robin Williams passa meio filme com ar
choramingão, o que admito, me mexe bastante com os nervos.
Não obstante, algumas cautelas devem ser tomadas, pois com certeza
Matheson deve ter encontrado diferenças entre os vários livros que leu. Por
exemplo entre a teosofia original de
Blavatsky e a neo-teosofia, como aparece aqui expresso nesta página do
portal Blavatsky Study Center de Daniel Caldwell.
Abaixo o trailer do filme, que está pontuado com um generoso 6,7/10 no
IMDB, o que provavelmente é bastante influeciado pela qualidade dos efeitos especiais que mostram um mundo
astral muito intenso (ganhou o Óscar de melhores efeitos especiais).
Há esse lado lado positivo das imagens conseguirem impressionar o
espectador de uma forma que o pode levar a investigar mais o assunto. Pena é,
que não seguissem mais de perto o livro de Matheson e tenham tentado seguir uma das
receitas à moda de Hollywood.
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